30/05/2008

linguagem bege


Aula de poesia contemporânea: cada aluno deve trazer poesias que admire, de 1960 pra cá. Não pensei duas vezes quando levei "Pintura expressionista", poema que dá uma breve idéia de sua proposta e parece ser resposta a poemas que uma vez lhe enviei. Estavam no páreo Adélia Prado, Orides Fontela, Caio Meira, Paulo Ferraz, Claudia Roquette-Pinto...
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Minha poeta foi a primeira a ser analisada. Érica Zíngano deu a partida, dizendo-se não convencida. Começo a ficar nervoso, replico-lhe que minha escolhida não utiliza violência branca, e sim linguagem branca. Érica publicou poemas na revista ZUNÁI onde não só usa, mas menciona uma violência silenciosa do mundo. Me explico: a linguagem de minha ré lembra-me uma pureza descontextualizadamente diurna/ teologicamente cuidadosa/positiva-racional, diferente dos processos de sucinta secura sexy da Érica (também gosto...) - que, contrariada, recomendou-me um filme onde o paraíso na terra é todo branco, inclusive em prateleiras e produtos de supermercado, e não deu-se por vencida. Assim, para o meu azar, os demais entraram no embalo. Andréa Catrópa, ministrante do curso, disse que cada poema deve refletir uma vida inteira, um mundo, às vezes isso resulta em prosa poética, o que eu admiro e encontro em seus poemas, de uma temática, linguagem e posicionamento diferentes dos de Beatriz Bajo. Tendo seu blog sido lido por ela, que disse ter visto em Beatriz a postura da geração marginal na forma direta de lidar com o leitor, eu concordo se isso significa o poeta que, completo, se coloca na vida. Porém, meio escandalizada, Andréa ainda disse ser masoquista as combinações da palavra "esquartejada" e a frase "tirar-me toda a pele" no corpo do poema.
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Será que há uma linha moral vigente nas atuais diretrizes da crítica brasileira? Se formos entender a poesia ao pé da letra, não só Beatriz, mas uma grande leva de bons poetas estarão promovendo um holocausto... Poetas são apenas serial killers, malucos, bebês chorões, frustrados, vampiros? Uma psicóloga, colocada, entrou na onda, mas foi só eu prestar atenção em sua análise para que seu tom clínico fosse metamorfoseando a um discreto elogio, à revelia, desistindo da idéia de deitar minha poeta em seu divã. Victor Del Franco disse que minha admiração poderia estar equivocada. Os demais alunos limitaram-se a vagos palpites, talvez sufocados pela opinião geral.
Onde eu fui parar?
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Talvez rindo de tudo isso, com uma voz elevada e decidida, sem acentos extra-dramáticos, minha "esquartejada" guarda suas armas brancas para um rubro desmazelo sobre o leitor. Não há preocupações e impressões demasiado exteriores e/ou contextuais na poeta do amor. É a essência X forma, o conteúdo X o vaso.
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Meus colegas certamente perderam a chance de descobrir seu sentido mais completo em poemas como "Sempre estivemos", "Tac táctil", "Que Truque!", "Água guardada" - os quais confirmam que ela não está de brincadeira.
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Beatriz nasceu com o fêmur deslocado da bacia e usou um aparelho que dificultava sua locomoção em boa parte de infância, o que a estimulou a começar a escrever trovas, letras de música e textos dramáticos já com 9 anos de idade, passando o tempo que impossibilitava maiores movimentos do corpo. Nasceu em São Paulo, tendo se mudado ainda criança pro Rio de Janeiro (seu sotaque é carioca, hehehe...), onde graduou-se em letras pela UERJ. Atualmente é aluna especial em mestrado na UEL e professora; contribui em diversas revistas eletrônicas como poeta, resenhista e contista, tendo sido vice-ganhadora de concurso para antologia poética muy respeitável. Ela diz ter sido fundamental para sua formação o filme Sociedade dos Poetas Mortos e uma oficina de poesia que fez, ministrada por Marcelino Freire.
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Conforme os poemas que publica em seu blog pelo pseudônimo de Linda Graal, depreende-se que o sujeito de seus devaneios não posiciona-se como vítima: têm-se a impressão de algo sublime, livre, nem urbano nem rural. Soltos encadeamentos de pulsantes e transbordantes imagens sobrepujam uma tímida biografia. A transcendência é ponto de partida dos primeiros versos de sua personalidade, e não o objetivo final; assim não nos é permitido verificar a ossatura de seu lado B enquanto ela vai escolhendo as palavras que veste e dá vida, processo que geralmente acontece nos poemas que dão mais valor à experiência.
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Sua linguagem não é bem branca, diria que é bege, mistura de pele, areia; desmaio de uma maturidade serena; equilíbrio, independência, elegância e controle emocional; crepúsculo espargido sob as franjas de um horizonte-possibilidade de nacaradas conclusões. Não somos agredidos pelas "educadoras" e às vezes brochantes imagens atuais. Sendo assim, suas palavras agradam, sua fina superação poética esboça alusiva resposta (sem sair de seu mundo pessoal) à profusão de vanguardas e grupinhos contemporâneos em "Ave mocinha" e também no abraço final de todos poemas, fardo encarado como exclusivamente íntimo em seu modo de conversar com um interlocutor sempre presente, ora recebendo parte do "mal-estar" da atualidade, ora distante - porém compreensível em suas ansiedades:
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"Enroladinha
preparo-me um cativeiro
gaiolas de goelas
de engasgados amantes
querendo seio beijo bico"
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Não sendo permitido oprimir a bem-resolvida visão do veni vidi vici - sensação que acompanha a fisionomia dos valores de seu EU lírico - a impressão que temos da maneira da poeta encarar a vida não diria que é marginal, mas sim à margem da relação com o outro: verdadeiro mote de sua triunfante e planadora pesquisa.
Atuais poetas poderiam julgá-la de alienada, inatingível. Todavia seus objetivos não são didáticos, sua delicada e inovadora verve que "come borboletas" passa a impressão de estar em um nível onde o intuito das coisas que a cercam não representa novidade:
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"Assim que se deitou
Sobre meu pé tão delicadamente
Trouxe-me algo de fenda
Algo de talho, latente
Entre os batentes da minha janela
Adentrando pelos basculantes
Roendo as sementes"
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Exatamente por isso, arrisco dizer que Beatriz é uma poeta que vai "ficar", esperta o bastante para desconfiar de duvidosas preocupações por uma poesia mais popular e inteligível aos grandes meios, às vezes sem a alma de suas formas abertas, contrastando com uma lógica mais sentimental e restrita, à espera do devido reconhecimento, que não tardará em chegar.
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Feminina, despretensiosa, inebriante e cristalina, sempre trilhando o caminho da simplicidade, sua criativa metafísica é ligada por abundantes conjunções, único e aparente lugar a uma dura realidade que não a encanta. Cada vez mais despedindo-se de ingenuidades decorativas e/ou discursivas, seu verdadeiro diferencial é mais baseado no arranjo de sobreposições imagéticas do que em indefinidas aventuras sintáticas:
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"é alma
a febre de corpo
temor de esquecimento
é alma - junto com a tua -
o vôo cai em delírio
@laúde como abraço
leve - em lava - alma
a deslembrança é o corpo a mentir a febre"
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Inquestionável, o que se vê como obra incompleta e ambulante é vista de cima, sem que se perceba, por olhos distantes e críticos, não se esforçando em convencionar um encontro de verdades. Como possível amigo que, inviável o contato, se prende em palavras de impacto, o amante e o amado recebem mais e mais confissões do desterro poético que, recuando, meio bruxo (no bom sentido), não faz nada para recuperar e/ou repetir um tempo, um caso perdido.
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Sem performática concatenação entre poemas semi-livres, porém sempre com começo, meio e fim bem urdidos - de singulares e às vezes estreitas aliterações e assonâncias; fluidos concretos em rima; atos funil - sua mensagem, romântica, crê na forma estabelecida no sentido da criatividade interior, sendo salva pelo que lhe falta e irritando quem espera algum poema denúncia ou lamúria por demais óbvia.
Aindo digo que trata-se de algo terapêutico, que faz bem mesmo, é uma leitura agradável e muy pessoal, um brando roubo de fôlego: verdadeira meta do poeta lírico, há muito tempo esquecida.

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