11/05/2008

inland empire

Não é pra entender.
Se os sentimentos estão alinhados a uma época que procura sentir o ilógico em relógios adiantados, o cineasta verdadeiro encanta o espectador que prefere brincar de se deixar levar ao invés de descobrir significados. Oculto na criança de cada amante da magnífica estética presidida na vida cotidiana de dramas, conflitos, perturbações emocionais e a bela forma que esses trecos tentam preservar, ele sobrevive.

Para avaliar a qualidade de uma obra em tempo de reality-shows e fábulas-alegóricas-não-condizentes à queda do império dos sonhos, é preciso ser um terrorista inconsciente, distante e isento de críticas revogadas ao que está mais baixo, mais indefesamente propenso a sacrificar-se em nome de ideais mais íntimos...
Nossas crianças assistem filmes sobre carros com vida própria, bruxos-mirins, e demais super-heróis que apagaram da memória o 11/9 e continuam lhes alimentando o sonho americano, através de personagens que resolvem transcender em sentido cerebral e vazio. Os pais nascidos nos anos 70/80 bem sabem que não há como se arrepender por terem visto um Kubrick inadequado pra de menor em madrugadas televisivas de pré-adolescências solitárias. Se a mensagem do ser humano passivo não continua fluindo em sensações só recuperáveis num #1 crush já balzaquiano, estaremos criando asnos com varinhas de condão não só em eventos de RPG e encontros cosplay.

Nazareno gosta de entender uma razão, uma moral na estória. Ele foi ver o filme pensando que se tratava de A Espiã. Até aí tudo bem: viu o começo e só por isso já o classificou como muito bom, uma coisa louca mesmo, legal... há toda uma preparação: primeiro a cena do projetor de cinema, na seqüência uma agulha toca o disco sob rápido jogo de luz e sombra; diálogos tipo walkie-talkie vão se estendendo em compassados barulhos de sinos abafados e a luz refletida no disco vai metamorfoseando-se num corredor de hotel, tudo em preto e branco. Porém a cena no qual um casal dirigi-se ao quarto não parece tão antiga como a do disco, embora continue no seu clima de filme-b: a mulher, desmemoriada, não sabia que tinha a chave para o quarto no qual ia entrar - primeiro significado chave do ultra-leitor do filme dentro do filme. O rapaz, suposto cliente ansioso pelo trabalho da jovem mulher, tenta conduzi-la. O rosto de ambos é encoberto por efeito de foco embaçado, impossibilitando-nos de identificá-los - primeira possível abstração do EU para uma "outra" personagem - enquanto a jovem aspirante pergunta O que devo fazer? Devo tirar as roupas agora?, ela deixa os seios suscitarem mais focos translúcidos e o homem tenta fazê-la recordar como caprichar nos também pouco perceptíveis movimentos de diáfano boquete, visto pela lente dos olhos dele. A "outra" personagem nos faz crer que é a moça do filme-b e estava fazendo teste com o diretor. O filme ganha cores, ela assiste, ofegante, uma TV fora do ar --está enrolada num lençol de cetim bordô, sentada na beira de uma cama forrada por adamascado cobertor verde, meio desarrumado, de um outro ou quem sabe o mesmo hotel da cena anterior--. O filme traz a primeira luminosidade diurna que vai potencializando-se, iridescente; à medida que uma bela trilha cantada em inglês (Polish Poem) atinge tons cristalinos e sublimes, a morena de traços eslavos chora, como que desiludida ou deixando a impressão de que é espectadora de um outro filme que está prestes a começar e ela já sabe o que irá acontecer: sua estória vai repetir-se com outra mulher que precisa libertá-la do peso de problema mal-resolvido do passado --que embarga a consciência dos bastidores de sua vida; logo a moça lamuriosa figura como personagem que "espera" salvação, solução iminente, de uma maneira tocante, incomum. Porém toda interpretação pode ser posta por água abaixo assim que vemos a próxima cena. No decorrer do filme, outras mulheres falam sobre acerto de contas, hipnotismo, assassinato com chave-de-fenda, previsões trágicas e outros diálogos vagos de diferentes idades, fases, tempos e lugares do EU antigo --estrangeiro, suspeito-- da personagem do filme "47". Uma vizinha grotesca adivinha que Nikki Grace, atriz hollywoodiana, deve interpretar o papel principal do filme sem saber que se trata de remake baseado num conto amaldiçoado de ciganos poloneses: o casal principal da primeira versão cinematográfica se apaixonou na vida real e foi assassinado, a mulher com a chave-de-fenda enfiada na região do fígado, do baço, por ali...

Então a moça lamuriosa abre passagem à TV com imagem de chuvisco: do outro lado do aparelho, como se a TV tivesse uma segunda tela na traseira, vista de cima uma família de coelhos contraria metabolismo e instinto, levando uma vida cotidiana doméstica pachorrenta: a coelha mãe sentada de frente à TV, num sofá centrado em espaçosa sala de pé direito alto e paredes verde-fraco-antigo; o ambiente parece valorizar o espaço entre os outros coelhos --o coelho pai que chega do trabalho e uma coelha camareira, mais "na dela", que passa roupa ao fundo, com movimentos lerdamente febris--. Primeiros diálogos entre roedores-sapiens são dignos de risadas por parte de uma platéia que situa-se fora do alcance de nossos olhos...

Depois que Nazareno viu que o dvd não era de A Espiã, ele caiu na gargalhada com a cena final do filme, mesmo efeito produzido pela cena em que Naomi Watts --filha de hippie-- tem um tremelique espasmódico quando tá assistindo aquela chicana com maquiagem bizarra e desenhos de lágrima negra borrados cantar Llorando --versão de Crying, by Roy Orbinson-- no clube Silencio, da antiga Cidade dos Sonhos de David Lynch; e sei lá o quê, talvez a emoção do playback faz a cantora desmaiar "do nada" no meio da música.

O cara não tem script certo. A coisa vai fluindo ao sabor dos personagens que avançam dentro de uma digressão com quase sempre finais felizes e românticos, porém centrípetos, tipo coming-back de ternura advindo de todos sentidos. Dispersões do EU ganham vida própria e convivem em harmonia, ao contrário de Clube da Luta.

A trilha-sonora é linda, além do próprio diretor com Ghost of Love, tem Beck, Nina Simone, White Rabbit - que um dia Jefferson Airplaine apresentou no festival de Woodstock. Dizem que é inesquecível trabalhar com David Lynch, um cara gente fina, espírita. No set de filmagens o clima é de apaziguamento e há tranqüilidade no avanço das gravações, embora o que aconteça em cena nos faça pensar de outra forma. Os atores, figurantes e funcionários se tratam com amizade pois o diretor tem firmeza no que propõe sem deixar de saber ouvir sugestões alheias, com razoabilidade nas decisões. Você é conduzido à sutileza vinda da tragédia, como o conselho das prostitutas que miram lanternas na cara de Nikki na casa cenográfica (onde ela reencontra o ilustre abajur laranja intenso): deve-se observar a vida através de um buraco de cigarro feito em fino tecido de seda rosa.

 






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