17/05/2008

estamira



"(...) Enfia o farol na buceta.
da puta-mãe de vocês.
no cu da puta vaca.
da tua mãe-esgoto.
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Sou eu aqui.
dormindo na rua.
saia verde camisa preta.
Todos precisam de mim".



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Semana de comemoração do dia mundial da saúde mental: algo assim marcou evento que me levou a chorar de novo pela dama do apocalipse.

Lançado em 2004, ano Xtranho, o documentário de Marcos Prado veio à luz junto com novas propostas de políticas públicas pra luta antimanicomial, e ganhou vários prêmios nacionais e internacionais.
Embora tenha sido visto pelo aspecto da "pobrologia" segundo crítica da revista que dizem ser "indispensável", o filme tem méritos inquestionáveis para tapear não só a cara do público não-marxista e psicólogos mal resolvidos - em sua maioria realmente não muito a favor de trabalhos-denúncia.
Visões únicas de certo não dialogam com o critério pelo qual adesivam opiniões comerciais na hora de julgar um trabalho tão bonito.
O verdadeiro objetivo do filme vai além do simples relato das agruras dos menos favorecidos pela sociedade excludente dos espertos ao contrário...

Arbitrariedades nas quais a mente humana desculpa a dor estão na miséria, na loucura e na solidão, sem escolher classe social, e continuando à espreita de solução formato homem, positivo, par de seus anseios por justiça....
Arte não precisa redundar nas mesmas e velhas problemáticas para mostrar a beleza de uma senhora de 60 e poucos anos...

Catadora do aterro sanitário de Jardim Gramacho, Estamira, filha de astros positivos, passa seu tempo entre o lixo produzido pelo Rio de Janeiro ao som de canção de ar pentecostal dolorido, enquanto urubus disputam detritos sob forte ventania.
Ela começa seu dia-a-dia: sai do barraco toda limpinha pra trabalhar, percorre longa trilha de chão batido, pega o busão, veste suas roupas de serviço, mais à moda bicho, assim começando seu trampo.
Apresenta seus amigos, seus respectivos cachorros. Senta no seu mocó habitual, fuma um cigarrinho descansada, sorri, e começa a se apresentar.

Embora não pareça, ela toma cuidado com as palavras que diz: Augusto Boal se encantaria com os monólogos de sua sabedoria, de um raciocínio extravagante, capaz de levantar questões que mexem, que comovem o hipócrita escondido em cada um que se julga "normal" dentro de sua felicidade burra. Ou no mínimo Estamira desperta risos de nervosismo, como quando brinca com a seriedade do que diz, abre uma cervejinha, diz "cadê meu capeta?", a praguejar contra as pregações de seu filho evangélico...

Perdeu a mãe, filha de astros negativos, em um hospício... Casou-se com um homem que não tardou em maltratá-la na medida certa para que se revoltasse psicologicamente e fugisse do FBI. Mas uniu forças para não cair no mesmo destino da mãe, e debandou-se pro lixão, lugar onde encontrou mais chão para que suas idéias proféticas não se perdessem no ar infértil das atuais entidades brasileiras. É bem sabido que a vida em sociedade impõe duras condições a um espírito selvagem. Estamira escolheu a liberdade...

Alternando entre momentos preto e branco y coloridos, a fotografia do filme assume papel de resgatar o encanto das coisas baixas, ditas feias, inadequadas, chocantes. Mas o que mais vale a pena é o discurso de Estamira: segundo ela o atual mundo está totalmente perdido devido à violência das armas brancas dos trocadillos (trocadilhos: loucos diplomados) - que se aproveitam de status social mais prestigiado para transferir o peso de suas consciências em um mundo freudiano de chantagens e opressões emocionais (enquanto esquizoanálise ainda engatinha no Brasil). Ninguém mais é inocente, o verdadeiro salafrário atira pedra e esconde a mão. Existe o controle remoto superior - situado no além dos aléns - e o artificial, que controla seus nervos carnais através de fios elétricos, por onde os deuses cientistas controlam tudo para analisar o efeito de novos métodos, como se a coitada fosse uma cobaia... A única solução é botar fogo em tudo! Ou o comunismo...

Dá vontade de encontrar Estamira pessoalmente e abraçá-la, dizer que a entendemos, que pensamos em coisas parecidas, chorar no ombro dela, tocado por cenas como aquela em que percebe-se seu sofrimento pela filha que não mora consigo dizer ser falta de fé o problema da mãe.

Mas Estamira beija a foto da filha mais nova, recoloca a imagem num altar, e não desiste de seu sistema de códigos pessoal com o qual identifica o céu e tudo o que existe nele como simples reflexo da terra, e seu pensamento é um cometa, que sob denso efeito de psicotrópicos a deixa inoperante e sem inspiração para condenar os trocadillos, então ela fica nas mãos do controle remoto artificial, o que ela odeia. Falando ao telefone em uma língua misteriosa, manda Deus à merda, ao caralho, ao inferno. Abaixa seu vestido de domingo e mostra a buceta ao neto, dizendo: "ó, tua mãe nasceu daqui, não foi Deus que botou ela no mundo!".


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Um comentário:

Rita Medusa disse...

Po meu essa foi um dos melhores pensares que li sobre o "Estamira"
bem norteado e com emoção (adorei a parte da vontade do abraço)